quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O amor acaba


Por Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.


Texto extraído do livro "O amor acaba", Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1999, pág. 21, organização e apresentação de Flávio Pinheiro.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sobre profissões, ser mulher e escolhas

Quando era pequena, sempre dizia que queria ser arqueóloga ou astrônoma. Achava o máximo a ideia de viajar bastante e poder encontrar resquícios de vidas passadas ou poder estudar o céu e as estrelas e ver que não estamos sozinh@s por aqui. Não me recordo quem ou que me fez despertar este interesse por estas profissões tão incomuns, porém consigo lembrar os motivos que me fizeram desistir.

Eu sou a filha do meio. Tenho uma irmã mais velha e um irmão mais novo. Nós, as meninas, éramos acordadas gentilmente, às 8h da manhã, com salpicadas de água em nossos rostos, para que pudéssemos ajudar a nossa mãe nas tarefas do lar, enquanto meu irmão podia continuar com o sono dos justos. Dos três aos sete anos, mais ou menos, fiz natação. Fui a menina mais jovem da academia a ser medalhista nas quatro modalidades, aos sete anos de idade. Mas por ser uma mocinha, quando crescesse me disseram que ficaria feia com os ombros largos e por isso me convenceram a desistir. Aos oito anos, creio eu, entrei no ballet. Porém não me enquadrava nos padrões daquelas meninas esguias. Sempre fui baixinha e pernuda. Saí.

Passei a infância e a adolescência brigando com os padrões e tentando fugir deles, ao passo que escutava de muitos: "Não pode ser! Você nasceu errada!". Era uma exímia jogadora de handball e basquete do time da escola, apesar da minha baixa estatura. No portão de casa, os garotos gritavam: "Euler! Vem jogar bola!", para o desespero dos meus pais. Aos 13 ou 14, época em que os meninos passaram a me despertar outros interesses, além de brincadeiras de "mão", piadinhas e conversas sem sentindo, as quais adorava fazer parte, tentei me enquadrar nos padrões da época: tênis Keds, cabelo chanel com franja de Mc Donald's, legging e mochila de bichinho. Resultado: um fiasco! Gostava mesmo era de usar mini blusas ou camisetas e pegar as bermudas e calças do meu pai para que parecessem "big". Era mais feliz assim.


Nas conversas que tinha com a minha irmã, porém, eu me espelhava nas estereotipadas propagandas de margarina e dizia que queria ter uma família daquele jeito: papai, mamãe e filhinha. Afinal, era o único modelo que conhecia. Já minha irmã dizia que se pudesse ter um filho por geração espontânea, preferiria. Hoje a vida tratou de inverter tudo; eu cuido de minha filha "sozinha" e minha irmã tem a família dela. Longe, ambas, de ser uma "Doriana" da vida (ainda bem!).

Já quis também ser jogadora de basquete profissional, pianista, jornalista, atriz... Mas para cada desejo meu, surgia alguém para me dizer que isso não era coisa de menina. Meus pais me incentivavam do jeito deles e não os culpo por passarem a vida tentando que eu me enquadrasse para que eu não sofresse. Hoje olho para minha filha e desejo que ela busque os caminhos dela, com ou sem dor, tendo a certeza de que ela poderá contar comigo independente da escolha que fizer.

Sou fotógrafa, trabalho com gente, nas redes ou pessoalmente, e extremamente grata pelos caminhos tortos que trilhei.

Ainda há gente que não compreende, olha de canto, tenta me "consertar", mas desde muito menina aprendi a brigar pelo que acredito e mantenho o terrível defeito de ser questionadora e sonhadora.

Por favor, não me acordem!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Enlouqueci aos trinta

Aos trinta eu fiz
Pensei demais, enxerguei longe e percebi além
Com trinta anos eu me apaixonei por um menino, por psicanálise e por mais três livros
Senti tesão por mim e desejei uma moça ou duas; sem culpa
Aos trinta, me chamaram de puta, ousada, separada, me olharam com dó; não vi
Com os mesmos trinta, me admiraram, me desejaram, me chamaram de vadia; gostei
Deleguei minha filha ao pai, viajei, bebi e dormi 12 horas; nada de culpa
Recuperei laços, desfiz alguns e fiz nós, muitos nós
Passei máquina 3 no cabelo, pintei o olho de preto e usei batom vermelho. Adorei.
Me olhei no espelho ontem e gostei do que vi. Hoje, não. Amanhã, sei lá.
Afirmei gostar de sexo sem compromisso (a não ser comigo mesmo), achar que nunca amei alguém e já ter transado no primeiro encontro. Culpa zero.
Trintei e gritei ser feminista, chata e visceral. Ouviram.
Disse pra todo mundo que gosto de política, de futebol, que choro à toa, dou risada de graça e prefiro não comer carne
Arrumei um emprego novo, meu quarto e me intitulei fotógrafa; e mais outra paixão, nesse meio tempo
Afirmei ser preguiçosa, decidi ser menos técnica, forcei um ócio criativo e produzi mais
Descobri que prefiro o horário da tarde pra noite e que sempre aguardo feliz, o horário de verão
Comecei uma pós, resolvei fazer mestrado, mochilar, dormir menos e trabalhar muito; vou ser mestra.
Contei: dez tatuagens. Quero mais
Notei que música me move, me paralisa e tenho trilha pra tudo
Confessei que não gosto de religião e que optei por pisar na terra, abraçar uma árvore e agradecer ao universo. Choquei.
Revelei que sou careta e que minha única brisa é a da cerveja e de um cigarro no porre ou o maço todo

Trinta anos; menina inquieta, mulher vulcão

Enlouqueci, dizem.
Eu digo que me asssumi. E que ainda tem mais.